18 de agosto de 2025

“Cheiro de Enchente”, novo single da Diokane, verte a agonia da maior tragédia climática do RS e dá voz a vítimas da catástrofe com documentário/clipe

Créditos :Leandro Monks

Em meio ao caos que se alastrou com a enchente que atingiu o Rio Grande do Sul em maio de 2024, um forte odor vindo do lodo e dos detritos, carregados de sedimentos variados – como animais mortos e esgoto –, deixou a maior tragédia climática do Estado ainda mais perturbadora. É esse o mote de “Cheiro de Enchente”, novo single da banda porto-alegrense Diokane.

A composição é um relato do que se viu e sentiu durante a enxurrada de horror, com base, principalmente, no que foi testemunhado ou mostrado na imprensa em Porto Alegre e arredores. Um documentário/clipe com imagens da catástrofe e depoimentos de quem sofreu diretamente as consequências da inundação acompanha o lançamento. Até mesmo as cenas em que a banda aparece tocando tiveram como cenário um dos inúmeros locais alagados na capital gaúcha.

Assista ao Documentário /Clipe “Cheiro de Enchente”:

Escute “Cheiro de Enchente”:

https://onerpm.link/453007443592

No vídeo, os personagens que narram como foram impactados pelo dilúvio são familiares e amigos da banda – mostrando que vítimas da catástrofe estão por todas as bolhas. A amostragem, ainda que pequena, ilustra números assustadores sobre a magnitude do evento climático que não poupou gente nem bicho. Foram 478 dos 497 municípios gaúchos atingidos, conforme a Defesa Civil do RS

Houve impactos para cerca de 2,4 milhões de pessoas (entre as que precisaram deixar suas casas e as que tiveram interrupção de serviços), com mais de 180 mortos e 25 desaparecidos. Além disso, o governo do Estado estima cerca de 20 mil animais resgatados. As áreas mais afetadas incluem Vale do Taquari, Porto Alegre e Região Metropolitana. Na capital e cidades vizinhas, boa parte dos atingidos era gente pobre e/ou negra, conforme o Observatório das Metrópoles.

Sobre a música, mas não só

Descrever a percepção olfativa do que se sentiu durante e após a enchente é uma tarefa complexa. Para a presidente da Fundação Gaia, a bióloga Lara Lutzenberger (filha do ambientalista José Lutzenberger), houve um agravamento substancial do odor relacionado à catástrofe. A razão é a mistura tóxica e pestilenta com todo o tipo de lixo e materiais perigosos que as águas encontraram no caminho.

“Na enchente dos anos 1940, não havia nada disso, e os danos se “limitaram” ao alagamento, sem ampla contaminação associada. Os componentes orgânicos que se misturaram no coquetel do ano passado, que também foram mais abundantes que em outras épocas – incluindo esgoto por falta de redes de saneamento adequadas – proliferaram algas e bactérias em grande quantidade. Isso se revelou no mau cheiro”, elucida Lara.

A fetidez cessou conforme as estruturas que resistiram às chuvas foram secando e sendo limpas, mas as marcas do pé-d’água descomunal permanecem. Não apenas nas paredes ainda encardidas com as indicações da altura em que a inundação chegou, como também na memória de quem sofreu com a força da natureza. Essas recordações estão registradas em “Cheiro de Enchente”.

A composição foi gravada no Black Stork estúdio, com produção de Thiago Caurio (baterista da Atomic Elephant). Já a mixagem e a masterização ficaram sob responsabilidade de Renato Osório, guitarrista da Atomic Elephant e produtor que já trabalhou com Híbria, Distraught, Leviaethan entre outros. O vocalista da banda Pull The Trigger, Tiago “Taz” Freitas Severo, 44 anos, faz participação na faixa.

Ele é morador da Vila Farrapos, zona norte de Porto Alegre, e perdeu praticamente tudo que tinha na residência em que morava com os pais e a filha, precisando sair resgatado por um barco. Taz canta junto o refrão:

“O cheiro da enchente / mal-estar evidente / da náusea à dor / desamparo latente”.


“Teve o cheiro do momento em que a gente saiu, que era um odor de gasolina, pois tinha barcos circulando para resgatar a população. E teve o pós, quando a água desceu e voltamos para ver como ficou a casa, que era pior. Era algo forte, de muita coisa misturada, nem sei como descrever. Mas se isso vem à lembrança, traz o gatilho de que possa acontecer novamente”, afirma Taz, que teve a habitação coberta por 2m20cm de água.

A operadora de OPLS Vanessa Giovagnoli dos Santos, 47 anos, moradora do Mathias Velho – periferia de Canoas e um dos pontos que mais sofreram com a tragédia em todo o RS –, relaciona o bodum ao luto:

“Era cheiro de morte. Não é só uma percepção do olfato, porque é algo que remete ao vazio das perdas”.

Créditos :Leandro Monks

Testemunhos da destruição

Para ilustrar o tamanho da catástrofe que veio do céu, “Cheiro de Enchente” chega acompanhada de um documentário junto ao clipe. A produção audiovisual é dirigida pelo baixista Billy Valdez, com fotografia, operação de câmera e assistência de direção de Leandro Monks. A obra apresenta depoimentos de vítimas da enxurrada, bem como cenas do cataclismo misturadas com takes da banda tocando. 

As imagens do grupo ao vivo foram captadas no Áudio Porco, estúdio no bairro Cidade Baixa, região central de Porto Alegre. No local, o refluxo do esgoto e a água que o sistema de bombeamento não deu conta de escoar, fizeram com que o líquido empesteado chegasse a aproximadamente 1m20cm dentro do estabelecimento – que fica abaixo do nível da rua. O estrago obrigou o empreendimento a interromper os serviços por cerca de 60 dias e demandou investimento não previsto para reformar o mobiliário atingido.

“Tínhamos uma reserva, ainda bem. Se não, o jeito seria fechar”, avalia Moisés Augusto Rodrigues, 38 anos, proprietário do local, que admite temer algo parecido em um futuro não muito distante.

Perdas materiais também acometeram a secretária administrativa e coproprietária do InkPact Tattoo Gallery Carina Nascimento Giehl, 35 anos, e o tatuador Fernando Antônio “Tampa” Giehl, 40. O casal teve a casa em que morava, no bairro Fátima em Canoas, invadida por cerca de dois metros de água. O espaço profissional, no bairro São Geraldo (zona norte de POA) não foi poupado – ainda que com nível de alagamento menos elevado do que na residência.

“Ficamos um mês fechado com água dentro e mais um mês de limpeza. Foram cerca de cinco ou seis lavagens para sair o cheiro, que só parou mesmo depois de lixarmos o piso umas três vezes”, recorda o artista, que saiu de Curitiba com a família quando era criança justamente em razão de uma enchente que invadiu o lar onde moravam.

Apesar do prejuízo com móveis, decoração, eletrodoméstico e outros itens, Carina conta que a dor maior foi presenciar objetos simples, de valor afetivo e ligados a infância dos filhos, sendo consumidos pela intempérie. 

“Em uma das idas para limpar a casa, em Canoas, achei roupas dos meus filhos (um com 10 anos e outro prestes a fazer 18) na rua. Aquilo não sai da minha cabeça. Esse tipo de lembrança não tem mais. É uma recordação da vida que a gente perdeu”, desafoga, às lágrimas.

Izza Balbinot, 32 anos, ex-vocalista da banda Välika que trabalha em diferentes frentes no setor de eventos, reforça que o episódio foi traumático. Ela destaca que o pouco que tinha no domicílio, no Mathias Velho, foi perdido na molhaceira.

“A gente já é desestruturada emocionalmente por outras questões e ainda tem de passar por isso. Foi desastroso, destruiu bem mais do que só pertences”, desabafa.

Vanessa Giovagnoli também não esquece a tristeza que sentiu ao saber que investimentos feitos com sacrifício foram destruídos. 

“A enchente nos impactou de todas as formas, seja psicologicamente ou financeiramente. Ainda é uma luta”, pontua a irmã do guitarrista da Diokane, Rafael Giovanoli.

A casa em que ela ainda vive com a mãe – a pensionista Silvana Giovagnoli, 66 anos – e o filho Lucas Giovagnoli, 12, ficou submersa por cerca de seis metros, com praticamente tudo o que havia dentro inutilizado pelo encharcamento. Agora, a família busca deixar o imóvel em que residiu por boa parte da vida, com medo de passar pelo pesadelo outra vez. 

“A gente continua traumatizada. É algo que não vai passar logo. Eu não consigo nem dormir quando tem barulho de chuva. Se for possível iremos para outro lugar, queremos sair daqui”, frisa Silvana.

A fluidez com que a água se alastrou durante o evento climático do ano passado contrasta com a aparente falta de urgência do poder público para lidar com um possível novo desastre. Poucas ações concretas para prevenir ou mitigar outras enchentes foram implementadas, reforçando o temor de quem viu a própria história naufragando. Basta alguma precipitação mais forte para o pavor tomar conta. Foi o que aconteceu em junho de 2025: uma tempestade trouxe à tona o lembrete de perigo iminente, com chuvas três vezes maiores que a média, mensurou o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Novas mortes (ao menos cinco) e estragos em diferentes áreas do RS foram confirmados, de acordo com a Defesa Civil. E isso não cheira bem como previsão de futuro.

Barulho para verter insatisfação

O jornalista Fábio Schaffner, de GZH, que atuou na cobertura das inundações em pontos diferentes do Rio Grande do Sul, percebe o lançamento da Diokane da seguinte forma:

“Cheiro de Enchente”, o mais novo single da Diokane, tem a urgência e a revolta de quem testemunhou um cataclismo climático e sobreviveu para cantar a desgraça. Sete anos após o lançamento do EP de estreia, “This Is Hell We Shall Believe”, a banda de hardcore/metal gaúcha faz do aluvião que atingiu o Estado em 2024 tema de sua canção de retorno. Mas esse, definitivamente, não é o inferno em que a Diokane acredita. Pelo contrário. Ao narrar o sofrimento de quem perdeu tudo o que tinha e o descaso de quem não fez nada para evitar a tragédia, Homero Pivotto Jr. exorciza ao microfone a mistura pútrida de chuva, esgoto e carniça que invadiu casas e ruas, enquanto Billy Valdez (baixo), Rafael Giovanoli (guitarra) e Gabriel Kverna Motta (bateria) nos conduzem pelo ouvido ao purgatório da lama e do caos de uma cidade submersa. O começo, hipnótico, é como o redemoinho que traga o náufrago. Os riffs crescem, mas sem ceder à velocidade. A melodia é lenta e pesada, com a força de uma correnteza que se move devagar e arrasta tudo que há pela frente. Com 3min20s, “Cheiro da Enchente” é pungente e necessária. Muitos cantaram a enchente sob a ótica poliana do recomeço, o sol sorrindo na manhã seguinte. Faltava alguém para dar punch ao desamparo, para nos lembrar que escurece de novo no fim da tarde.

Ficha técnica:

Billy Valdez – baixo

Gabriel “Kverna” Motta – bateria

Homero Pivotto Jr. – voz

Rafael Giovanoli – guitarra

‘Cheiro de Enchente’ foi gravada no Black Stork Studio

Produção: Thiago Caurio

Mixagem e Masterização: Renato Osório

Participação especial na voz: Tiago Taz Freitas Severo (Pull The Trigger)

Arte da capa: Rafael Giovanoli

Fotos da banda: Leandro Monks

Reportagem/Release: Homero Pivotto Jr.

Direção e edição do documentário/clipe: Billy Valdez

Letra:

Quem tem medo do inferno,

Reluta em crer

Que a treva veio do céu

O cheiro da enchente

aflição que se sente

enxurrada de horror

Tristeza inclemente

Sufocando sonhos

jogados ao lixo

choveu sofrimento 

pra gente e pra bicho

A marca do lodo

impregna a parede

e lembra o descaso

que nenhum dique conteve

Todos no mesmo barco

naufragando em agonia

afogando em lembranças

do que já foi um dia

O cheiro da enchente

mal-estar evidente

da náusea à dor

desamparo latente

O esgoto vertendo

repulsa e nojo

se vê rato e entulho

cenário bico do corvo

no fundo do poço 

resgatando esperança

pra afugentar o mau tempo

algoz de adulto e criança

O cheiro da enchente

mal-estar evidente

da náusea à dor

desamparo latente

Links Relacionados:
https://www.instagram.com/diokanedk
http://www.facebook.com/diokaneDK666
https://diokane.bandcamp.com/

Fonte: Homero Pivotto Jr.


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